quarta-feira, 28 de março de 2007

Enquanto isso, nos subterrâneos...

Para a amiga Ana Paula, pois sei que ela jamais desistiria.

Ela:
Sentou no banco como uma bomba de efeito moral. Andar ansioso, olhar apressado, cada rachadura de seus lábios escuros tremulando como bailarinas executando movimentos condenados a nunca serem aplaudidos. Suas pupilas percorriam o mapa das estações como se seu destino fosse a quietude plena e final.

Ele:
Não se abalaria nem que uma bomba de efeito moral explodisse ao seu lado. A postura de seu corpo sentado possuía o mesmo formato do jornal que lia ordanamente. Retângulos e tipografias. Teoremas explicariam sua personalidade melhor do que metáforas. Parecia perfeitamente integrado aos objetos de plástico que compunham aquele interior, e sua posição harmonizava-se satisfatoriamente com a direção do movimento realizado pelo vagão. Uma equação perfeita.

Ela:
Para esquerda. Para direita. Apesar do movimento do vagão ocorrer em uma direção única, seu corpo manifestava-se indistintamente em vários percursos próprios. Para direita. Para esquerda. Parecia possuída por mil demônios que dilaceravam sua paz interior e enviavam seus pedaços esquartejados para diferentes recônditos de sua mente. Não dormia há dias. Para esquerda. Para direita. Olhava para cada estação com a força angustiada e represada de quem está na solitária há semanas, pronta para explodir tudo que se interpusesse entre ela e seu destino final de liberdade. Esbarrava em todos que sentavam-se ao seu lado, como quem tenta pedir ajuda sem levantar suspeitas. Para direita. Para esquerda.

Ele:
Os matemáticos só criaram a margem de erro para dotar seu cotidiano do mesmo arrepio doce de quem vai pela primeira vez dizer para ela tudo aquilo que está engasgado há tempos. Equações perfeitas garantem Prêmios Nobéis, mas erros e traçados imperfeitos provocam novos big bangs. Ele tem pensado cada vez mais nisso depois que trocou a Scientific American pelo horóscopo matutino no desjejum das oito. Desde então, passou a encarar sua objetividade centrada como manca, embora não conseguisse perceber de quê. E vendo o calor que emanava do ser insano e pequeno que ao seu lado convulsionava como uma centrífuga, sentia de forma irrecuperável que tinha encontrado a engrenagem para voltar a ser uma máquina, senão perfeita, pelo menos funcional.

Ela:
Como descrever o caos? Para descrever algo, você tem que aprisioná-lo em linhas, aquarelas, photoshop, o que for. Assim, como aprisionar o caos em carne, osso, Ellus e Arnette? Odiava profundamente o fato de ter sido escolhida como prancheta para algum artista metafísico frustrado registrar para a posteridade o que é o caos. Por isso estava sempre em fuga. Passou a vida inteira esperando portas se abrirem, sejam as de seu pensamento, sejam as da estação Cardeal Arco-Verde. Só então, ela podia se juntar à correnteza para longe de tudo que é tão frio. Mas ao seu lado, pela primeira vez ela viu o frio como algo novo. Algo meio estranho, meio parado, mas não de uma maneira enfadonha. Algo meio... casa. Embora aquele cabelo não tenha nada de propriamente caseiro. Ela não sabia, achava tudo tão louco que teve a certeza de que deveria ter carregado mais no Irish Coffee antes de pegar o metrô.

Os dois:
Daquele vulcão de pedra incrustrado no coração do famoso bairro-canção, diariamente era expelido o magma que tanto inspirava novelas, noticiários, reality shows, revistas de fofocas e diários íntimos (à moda antiga, não essa coisa blogueira). Seu colorido era único em sua multiplicidade humanamente bela. A vida sendo respirada por cada poro daquele caos metropolitano:
"Ai, me desculpa, eu derrubei teu jornal!"
"Tudo bem, acontece, deixa que eu me abai..."
"...xei, já abaixei e peguei. Nossa, me empresta a seção de horóscopo? Eu vou lendo, a gente tem que subir mesmo!"
"Tudo bem. Você entende o zodíaco?"
"Não, não sei nem o meu signo, mas gosto de ler e ficar imaginando que essas pessoas terão um dia feliz ao contrário do que foi dito. Você acha que sou louca?"
"Não traço diagnósticos psiquiátricos sobre quem não tenho base empírica para tal."
"Sabia que você era um desses caras de universidade, ou como vocês gostam de pavonear, da academia. Sabia! Só o moicano me deixou um pouco em dúvida, mas eu sabia!"
"Este cabelo é uma longa história que...
"... estou louca para ouvir. Mas já são quase cinco horas, vamos pegar um ônibus até o Arpoador e esperar o pôr-do-sol. Dá para você me contar sobre o cabelo, a tese, o panorama sócio-político e qualquer outra coisa fruto do dinheiro público que tenha nessa cabecinha inteligente. Agora, você só me promete uma coisa?"
"Você é tão impulsiva, eu não sei... não posso... sim, prometo."
"Promete que não vai embora, nem hoje e nem nunca?"

Ele demorou o percurso do 523, a subida nas pedras, o mergulho do sol nos Dois Irmãos até balbuciar um heróico, embora não muito resplandescente, "sim". O qual, aliás, ela nem notou. Mas caso o tivesse feito, teria achado graça, pois as verdadeiras promessas não são feitas com palavras, mas com olhares. E ela já havia obtido o que queria faz tempo.

6 comentários:

Leonardo disse...

meu querido... é impressionante a sua intimidade com as palavras, com as frases bem colocadas... sem contar o humor ácido, bem sacado, que cerca a sua escrita. Cada coisa que leio sua, construo em minha mente cenas, momentos cinematográficos.... continue na sua narrativa, pois caminhará para bem longe... forte abraço!

Unknown disse...

Rapaz, meus parabéns. A bastante tempo eu não lia algo tão bom!!! Acho que toda essa praia anda fazendo bem pro seu cérebro. Ou será o rock?

Ana disse...

Mauro,

Plac, plac, plac (som de palmas!)

Muito bom o texto. Corrigindo: excelente.
As metáforas usadas para ilustrar as personagens um tanto peculiares deu um toque especial à narrativa, pois além das cenas cinematográficas, como sinalizou o Léo (já cheia das intimidades chamando pelo apelido), o texto tem um quê de mensagem ambígua que só os iniciados ou maduros de alma (plagiando Drummond) conseguem perceber e entender. Na verdade, o encanto do texto reside aí, nesse ponto, em minha opinião.
A propósito, adorei o título, o diálogo e as observações sutis que intercalam as falas.
E chega de elogios, porque senão você fica mais gabola do que já é. E obrigada pela dedicatória. Você tem toda razão (embora eu negue veementemente): dificilmente eu desisto. Dificilmente.
Beijos.

Ana disse...

Desistir, quase nunca! Às vezes, eu só tomo fôlego necessário para poder planejar o próximo passo. O problema é que tempo medido assim varia de pessoa para pessoa. E daí, pode demorar um dia, um mês, um ano ou uma eternidade... rs

Anônimo disse...

Meu querido amigo, as suas palavras estão cada dia mais fluidas. Correm livremente por um texto sem peso, transparentes em meio as metáforas. E mesmo adorando as tuas letras, os seus textos são ainda melhores.
bjs

O Nome da Rosa disse...

"Os matemáticos só criaram a margem de erro para dotar seu cotidiano do mesmo arrepio doce de quem vai pela primeira vez dizer para ela tudo aquilo que está engasgado há tempos".

Lindo esse texto. Está escrevendo pracaráleo.