quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Tellin' a borin' story in a boring day...

Ele odiava sair de casa atrasado. Quase tanto quanto acordar cedo. Foi violentamente desmamado de um belo sonho pela necessidade de labutar. E eis que surge uma bola de neve de desgraças irrelevantes sucedendo-se em um roteiro demente. É sempre assim. Pela pressa, você não se enxuga direito ao sair do banho, e o prenúncio de um dia patético lhe presenteia com um par de protetores de ouvido à base de espuma de sabonete. Você corre com um par de meias trocadas, uma gravata esteticamente desprezível, segurada por um nó hermeticamente incorrigível. O café fervendo salta de forma suicida contra sua camisa amarrotada, formando um manchado manifesto sobre sua competência em fracassar como bípede pensante. Ao beijar sua esposa antes de atravessar a porta rachada, ele a nota sorrindo ansiosa diante sua saída, antes de rumar ao telefone no qual ela sussurrará malícias. Ser corno não era a pior de suas trapalhadas.

E lá se vai nosso anti-herói mor, dando seguimento ao seu dia chuvoso, em um coletivo sem cobrador. É claro que ele chocou violentamente a cabeça calva contra a barra de ferro enquanto o motorista equilibrava-se entre contar o troco da linda mulher que jamais lhe daria atenção e fazer o veículo andar. É claro que ao desembarcar foi abraçado por uma lamacenta poça d’água provocada por outro integrante da frota do transporte público urbano carioca. Sem cobrador. É claro, é claro.

Mas hoje seria diferente. Não só o hoje, ou o ontem, mas todos os segundos pelas infinitas sucessões de segundos até a temporalidade pedir aposentadoria. Por um motivo surpreendente. Ele descobrira onde se esconde Deus. Após todos esses milênios, é óbvio que o único ser a alcançar o Criador seria justamente aquele que há muito parou de se preocupar com Ele que sempre lhe delegou um rotineiro papel de coadjuvante número 1.984, gordinho e calvo (apesar de ter emagrecido 300 gramas no verão passado). Nada disso possuía relevância agora, ele descobriu onde Ele se metera. E neste exato momento, ele Lhe daria uma lição. Mesmo amarrotado, manchado de um café forte e amargo, com a orelha aureolada por sabão de banho, ele Lhe mostraria que as coisas não podiam ser feitas daquela maneira. Toda Sua pirotecnia emo não serviria para nada. Jesse Custer que se conformasse em ter a fila furada em seu ato de satisfações tomadas. O toque irônico da confusão toda é que ele seria magistralmente corneado enquanto cometia seguidas blasfêmias físicas capazes de deixar o caído rubro de vergonha.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Camisetas personalizadas de tarja preta

Tudo escuro e silencioso, as condições perfeitas para uma grande fuga. Silêncio, vocês atrás de mim! Não vamos estragar tudo agora, principalmente porque eu quem tive o esforço de arquitetar a coisa toda de forma perfeita. Gabriel, seu rufião dançarino, pare com a maldita Macarena! Se Freud estivesse vivo ele criaria a Pulsão Macarena em sua homenagem, seu merdinha. Em locais comuns, as paredes possuem ouvidos. Em um hospício, as paredes possuem ouvidos, câmeras de segurança e leões de chácara que se fingem de enfermeiros, então tratem de fazer silêncio para que tudo continue escuro e silencioso! Droga, Bernardete, jogar o urinol cheio na parede de vidro não foi uma atitude legal da tua parte. Eu te disse que vinganças e represálias deveriam ficar para depois que escaparmos. Agora, voltemos antes que os enfermeiros gorilões cheguem. Todo mundo, em fila indiana, por favor. Indiana, já falei! É mais fácil coordenar babuínos com diarréia crônica no uso de uma única privada do que loucos em fuga de um hospício...

Eu mereço estar aqui. Só os presos são inocentes que não merecem estar na prisão, os loucos sempre merecem estar onde estão. Eles merecem estar para não poderem estar para merecerem sair e estar. Entendeu? Meu psiquiatra também não. Vai ver por isso ainda estou aqui, sem entrar no mérito do merecimento. Ou não. Mas não importa. Tudo começou com um plano perfeito. Uma coisa muito simples: eu ia dominar o mundo. Para isso, eu precisava de uma estratégia. Eu ia enlouquecer as pessoas para depois domina-las. Como? Essa é a parte brilhante: camisetas personalizadas! CA-MI-SE-TAS PER-SO-NA-LI-ZA-DAS! Eu, Rodrigo Rodrigues Rojas, sou um gênio! Bastava entrar em cada e-mail, fotolog, blog e alma de todas as pessoas, oferecendo minhas camisetas personalizadas diariamente até fazê-las, as pessoas, e as camisetas também!, babar e espumar de insanidade. Se elas se interessassem, melhor ainda, vendia qualquer Hering manchada e ainda ganhava unzinho. O Coringa e o dr. Evil que se fodam, sou mais eu!

O plano funcionava harmonicamente, um lago dos cisnes maquiavélico e vitorioso. O problema foi quando eu comecei a mandar as ofertas de camisetas para mim mesmo. Nesse exato momento, percebi que talvez eu não fosse muito normal. Especial, como diria mamãe. Fui procurar ajuda profissional, então, e me jogaram nesta joça de paredes brancas. Eu podia falar um palavrão. Vou falar. Não, não vou não. Vou enviar camisetas personalizadas, pois é bem pior. Mas o local não é de todo ruim, vejam bem, conheci pessoas muito interessantes. O Gabriel, já lhes falei do Gabriel? Um figura, ele dança a Macarena compulsiva e cotidianamente, é impressionante. Porém, o mais importante é que o recinto provia minha sede de poder com o maravilhoso néctar da pós-modernidade comunicacional, a internet. Jamais abandonei meu mantra das camisas. Minha atual vítima é um blogueiro desses aí. Ele está prestes a vir fazer parte do séquito particular que formei por aqui, eu pressinto.

Consegui alimentar a boca faminta por olhares e insanidades desse estabelecimento com louvor. Minha tática das camisetas revelou-se estrondosamente frutífera no objetivo de me agregar seguidores. Bernardete foi o exemplo melhor sucedido do que seria a pupila perfeita. Provavelmente ela me sucederia no trono da nova ordem Rodrigo-rodrigues-rojiana mundial que se anunciava. Mas seu ato impensado e arremessador de urinóis necessitava de represália. Uma pena. Vou ter que deixá-la sem bananada no jantar de hoje.

Mas nada disso importa, tudo está escuro e silencioso novamente. O ontem foi um outro dia que não o hoje. E o hoje é o dia onde tudo ocorrerá sem deslizes. Já estamos quase no fim do corredor de número não importa, e agora é o momento mais complicado, pois precisamos passar pelos enfermeiros vigias do turno da noite. É agora. Isso, Gabriel, distraia-os com a Macarena enquanto rumo à minha liberdade = dominação do mundo = tirania para o resto das pessoas! Sinto a sede de poder sendo saciada gradativamente pela porta última tornando-se cada vez maior em minhas retinas, está tão perto, está tão perto... dor.

Muita dor. Geralmente este é o resultado do choque de um cacetete contra uma cabeça. E se a cabeça for a minha, então a situação torna-se realmente dramática. É a quarta vez só essa semana que a fuga fracassa. Pelo visto, Gabriel não tem treinado a Macarena o suficiente, preciso alertá-lo para tal detalhe. Enquanto sou arrastado para meus aposentos, sou informado que, assim como Bernardete, ficarei sem minha bananada no jantar. Droga. Até os gênios precisam de planos melhores de vez em quando. Mas não há motivo para pânico. O cara do blog está para chegar e, então, tudo será diferente. Eu pressinto.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Crônicas Ferdinandas

Belo texto do meu nobre favorito, Dom Ferdinando. Continue meu colaborador assíduo, vossa ferdineza!
Abraço!

Sala vazia. A luz está baixa. Algumas revistas espalhadas na mesinha de centro. Dezenas de DVD’s jogados no chão de madeira: filmes, shows, documentários. Televisão e aparelho de som, desligados. Uma taça, vazia, está sobre a mesinha; seu fundo avermelhado revela que alguém acabou de tomar vinho tinto nela. O tempo está frio, a janela fechada, mas nada que impeça a invasão do barulho de carros que sobem e descem a rua em frente ao prédio.
Ouvem-se passos. Primeiro, soam abafados atrás da porta de um dos quartos. Quando a porta se abre, surge ela, a dona dos passos, dona do apartamento. Pele branca, corpo definido, harmônico. Perfeita para os seus vinte e cinco anos. Os longos cabelos negros oscilam entre o liso e o ondulado, ainda mais quando estão despenteados. Ela usa um vestido de alcinha, da mesma cor dos seus cabelos e que, de pé, não cobre mais que a metade da coxa. Descalça, os passos ecoam ainda mais forte no seu chão, teto alheio.
Sentada no sofá, acende a luz principal da sala e bota no colo o gato que a seguia desde o quarto. Ela o acaricia, diz palavras de ternura incompreensíveis, a não ser para o animal. Aperta-o contra si, beija-o e o põe novamente no chão. Ela se debruça até a mesinha de centro, puxa uma revista qualquer e começa a folheá-la. Logo depois, pega o controle remoto jogado sobre o sofá, aponta-o para o som e seleciona: CD; Play; Faixa 3. O som do piano invade o apartamento inteiro. Apenas as mãos permanecem com a revista. O pensamento canta silenciosamente.
“Quand il me prendre dans ses bras / Il me parle tout bas / Je vois la vie en rose”
Ela esquece a revista e se deita no sofá. A música penetra sua alma e, assim como seu amado, em breve penetrará também no seu corpo. Lentamente ergue uma das pernas. Passa as mãos uma, duas, três vezes. Fecha os olhos para sentir as mãos dele ao invés das suas. Progressivamente a canção a fará ter as mesmas sensações que a noite anterior com seu homem lhe proporcionara.
“Il me dit des mots d’amour / Des mots des tout les jours / Et ça me fait quelque chose”
Sempre deitada, suas mãos (ou seria as mãos dele?) continuam a acariciar suas pernas. Passeia uma das mãos pelas coxas, a outra deixa cair por sobre o vestido. O toque, a música, os olhos fechados, tudo a faz se esquecer do resto. Um momento que não é só dela, mas de alguém que dá vida ao seu corpo e a sua alma.
“Il est entré dans mon coeur / Une part de bonheur”
O hino ao amor entra em sua carne. As duas mãos a acariciam por baixo do vestido. Envolvem os seios, passeiam em volta dos mamilos, descem pela barriga, chegam até a virilha... Vão para as nádegas... Tocam em tudo que está ao seu alcance. Ao contrário da canção eternizada por Piaf, não era apenas uma parte de felicidade que a possuía: era o êxtase, a realização do desejo, o gozo, o prazer, enfim, que a inundava. Revelavam-nos os gemidos, sorrisos, pulos e tremidas.
“C’est lui pour moi / Moi pour lui dans la vie / Il me l’a dit, l’a juré / Pour la vie”
Via-o claramente em seus olhos fechados, sentia o calor do corpo dele sobre o seu. O tórax dele pressionando seus seios, a língua que lambe e sussurra palavras de tesão e de amor na sua orelha, as pernas de ambos que se movem em sincronia e o juramento feito por ele – não dito, mas cumprido – de possuí-la, amá-la e querê-la como se toda vez que o fizesse fosse a primeira, a última e a mais importante.
“Et dès que je m’aperçois / Alors je sens en moi / Mon coeur qui bat”
Não ouve mais a música que termina. Todos os sentidos se deslocam para seu corpo. O clímax ultrapassa a divinal arte dos enamorados. Se Piaf impôs o luto a si mesma após perder o amado, ela faria o inverso, não só porque seu homem continuava vivo, mas porque o sentia junto de si, na carne e no coração. Retirou o vestido, a calcinha, levantou as pernas, juntou-as, pôs as mãos entre elas, começou a pular rápida e repetidamente, gemeu, gritou... Sem luto, sem tragédia, sem “La vie en rose” ao fundo. Parou de pensar, de lembrar, até de viver por alguns segundos. Não abriu os olhos. Apenas sorria, toda para ele.
Adormeceu. Acordou sob os lençóis, vestida dos pés à cabeça. Olhou pela janela. Chovia. Viu o relógio, a parede, a cabeceira da cama. Tudo como antes, nada havia de novo. Dura realidade à sua volta, em que a taça não guarda nenhum sinal da bebida dos deuses. Sonhar é viver, pensou ela. Infelizmente, o inverso não é verdadeiro. Viver é estar condenado a suportar o mais duro pesadelo para a alma humana: não ter a quem se deseja.