quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Blog novo: dêem boas vindas ao plurimãos!

Bem, ainda não sei se alguém frequenta este obscuro espaço. Mas caso o faça, aproveite e dê uma passada no blog coletivo que estou gerenciando com meu grande (e furador de chopes anuais) amigo Luis Antônio (o grande autor de nossa geração blogueira, aguardem e comprovem). A estratégia é simples: qualquer texto poderá ser publicado, de qualquer autoria (à excessão de Edmundo e Romário. E do Beto também), desde que seja uma criação coletiva.

Confiram: plurimaos.blogspot.com
E comentem, por favor!

domingo, 2 de dezembro de 2007

Ziraldeando

O azul ensolarado e vespertino emoldurava magnificamente sua fronte de menino destemido prestes a tomar a fortificação adversária. Não seria um movimento fácil, pois as caixas velhas e as árvores frondosas de primavera escondiam surpresas perigosas, adversários poderosos. E os pensamentos, estes sim os autênticos eficazes no tomar sorrateiro, se apropriaram de sua mente com a fúria de um rio represado por eras. Excitação, aquela palavra que Tia Terezinha mandara buscar no dicionário, é isso? Quer dizer que estava sentindo sua lição de casa pulsando viva na bomba irrequieta, dentro do peito, que papai diz ser o coração? Pobre papai, assertiu em silêncio, cardiologista há anos e mal sabia que tal órgão se alojava nas partes baixas, o único local que dói quando uma menina chuta, e foi ele mesmo quem disse que saberei onde fica essa parte do corpo no exato momento em que eu tomar o primeiro chute de uma menina. Seu pai ainda havia muito que aprender sobre coração e meninas, mas um quartel general inimigo precisava ser subjugado.

E as retinas das testemunhas daquela epopéica invasão capturaram cenas de coragem inenarrável, lembranças que forjarão na criança o caráter do homem que vive e não se deixa viver. E como intercalava passos magistrais por entre caixas abandonadas e galhos ressecados. Audacioso, sabia-se simultaneamente bailarino e maestro. Regia os impropérios desafiadores que jorravam de sua língua com o objeto que a sociedade convencionou denominar vareta. Mas os sábios, aqueles que se permitem conservar a faceta infantil como capitão honorário da nau olhar, sabiam ser a batuta em questão uma excalibur de autenticidade alardeada pelo próprio Arthur, o porteiro do turno da manhã que uma vez lhe contara uma lenda sobre um rei bretão adormecido em uma ilha de fadas.

Calma e silêncio. Os artifícios primordiais de um herói vitorioso. Brados cortando o céu, tremores de terra sob passadas pesadas e aceleradas de um par de all-star surrado. A alma e a lâmina do impiedoso sedento pela glória que catapultará seu nome para cantigas de chora-bananeira-chora e lendas de pátio de escola. E explodiu como uma matilha selvagem, nada se atreveria a se interpor em seu caminho. A poeira era levantada como uma imensa ola saudando o touro altivo e imbatível que era. Ou pelo menos foi, até ter sua trajetória vigorosamente interrompida pelo ser mais traiçoeiro, imprevisível e mortal. Venenoso, asqueroso, pesaroso, desastroso e ainda assim temeroso. Uma, sim, isso mesmo, uma menina! Daquelas bem embonecadas, exatamente onde deveria estar o antro inimigo que ele pretendia esmigalhar!

Parecia toda de cachos e porcelana viva, tomando seu chá de mentirinha sentada, e sua figura, bem como tudo que a adornava, destoava do jardim cujos joelhos das árvores estavam empapuçados de lama e terra batida. Tomava seu desjejum candidamente, e a elegância de sua brincadeira revelava com exatidão o quão sério e real é a capacidade de uma criança transmutar o mundo. Com a xícara a meio-caminho dos lábios, levantou o olho direito, apenas, e fuzilou o estatelado herói com um verde forte que em nada lembrava águas oceânicas no verão:

“O que você pensa que está fazendo?”
“Eu?! Veja bem, em tomadas de forte são tomados fortes, e não chás, e a senhora trate de evacuar esse séqüito inútil de pelúcia, ou de trocá-lo por comandos e thundercats capazes de realizar trabalhos de homem que é o que a senhora precisará para...
“Cale a boca. Você está imundo. Lave-se naquele riacho e tome seu lugar à mesa ao lado do Sr. Ternura Marrom. Creio que ele direcionará sua impulsividade bélica para uma boa educação e postura.”
“Não vou deixar minha patente rebaixada a um urso com olhos de botão que não agüentaria...”
“Agora. Vou separar sua refeição para servi-lo pessoalmente. Agora, sem um mas.”

Somente um demônio fundiria um sorriso tão estrategicamente encantador e um olhar que é a morada de uma frieza capaz de fazer gritar de pavor a mais renitente alma. O resultado dessa equação foi a obediência indiscutível do garboso soldado. Porém, assim que estivesse limpo e penteado, mostraria a quem cabia dar as cartas.

E retornou para a retomada de seu orgulho, mas seu fôlego foi estrangulado à meia lufada de escapar da garganta. Aquilo que seus olhos registravam, sua alma não decodificava. Na pequena cadeira de plástico se sentava placidamente o moleque ruivo da rua de cima, o rufião cujo quartel general pretendia tomar. Esparramava-se bem ao lado do senhor Ternura Marrom, que consentia com aquele despautério com uma calma surpreendente em seus olhos de botão. Naquele momento, aprendeu sobre decepção. Naquele momento, aprendeu sobre traição. Mas principalmente, percebeu que o coração não estava nas partes baixas, e que na verdade era aquela bomba em seu peito que de quando em quando explodia em direções diversas, como um corcel selvagem. Sabia que sua descoberta revolucionaria para todo sempre a ciência da anatomia humana, e que urgia sentar com seu pai e registrar cada detalhe para a posteridade. Mas não agora. O garoto ainda possuía muitos fortes inimigos para tomar, alguns castelos de sonhos medievais, com direito a dragões e avatares do second life, reflexo do imaginário infantil pós-moderno. Sim, ainda haveria muito tempo para outras descobertas anatômicas e fisiológicas inevitáveis. Mas este momento não é o presente, por enquanto tomado por sonhos vividos como reais e pela realidade alimentada pelo frescor da vida como uma eterna descoberta. E isso, meus caros, é uma das maiores belezas da nossa existência como homens.