quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Crônicas Ferdinandas

Belo texto do meu nobre favorito, Dom Ferdinando. Continue meu colaborador assíduo, vossa ferdineza!
Abraço!

Sala vazia. A luz está baixa. Algumas revistas espalhadas na mesinha de centro. Dezenas de DVD’s jogados no chão de madeira: filmes, shows, documentários. Televisão e aparelho de som, desligados. Uma taça, vazia, está sobre a mesinha; seu fundo avermelhado revela que alguém acabou de tomar vinho tinto nela. O tempo está frio, a janela fechada, mas nada que impeça a invasão do barulho de carros que sobem e descem a rua em frente ao prédio.
Ouvem-se passos. Primeiro, soam abafados atrás da porta de um dos quartos. Quando a porta se abre, surge ela, a dona dos passos, dona do apartamento. Pele branca, corpo definido, harmônico. Perfeita para os seus vinte e cinco anos. Os longos cabelos negros oscilam entre o liso e o ondulado, ainda mais quando estão despenteados. Ela usa um vestido de alcinha, da mesma cor dos seus cabelos e que, de pé, não cobre mais que a metade da coxa. Descalça, os passos ecoam ainda mais forte no seu chão, teto alheio.
Sentada no sofá, acende a luz principal da sala e bota no colo o gato que a seguia desde o quarto. Ela o acaricia, diz palavras de ternura incompreensíveis, a não ser para o animal. Aperta-o contra si, beija-o e o põe novamente no chão. Ela se debruça até a mesinha de centro, puxa uma revista qualquer e começa a folheá-la. Logo depois, pega o controle remoto jogado sobre o sofá, aponta-o para o som e seleciona: CD; Play; Faixa 3. O som do piano invade o apartamento inteiro. Apenas as mãos permanecem com a revista. O pensamento canta silenciosamente.
“Quand il me prendre dans ses bras / Il me parle tout bas / Je vois la vie en rose”
Ela esquece a revista e se deita no sofá. A música penetra sua alma e, assim como seu amado, em breve penetrará também no seu corpo. Lentamente ergue uma das pernas. Passa as mãos uma, duas, três vezes. Fecha os olhos para sentir as mãos dele ao invés das suas. Progressivamente a canção a fará ter as mesmas sensações que a noite anterior com seu homem lhe proporcionara.
“Il me dit des mots d’amour / Des mots des tout les jours / Et ça me fait quelque chose”
Sempre deitada, suas mãos (ou seria as mãos dele?) continuam a acariciar suas pernas. Passeia uma das mãos pelas coxas, a outra deixa cair por sobre o vestido. O toque, a música, os olhos fechados, tudo a faz se esquecer do resto. Um momento que não é só dela, mas de alguém que dá vida ao seu corpo e a sua alma.
“Il est entré dans mon coeur / Une part de bonheur”
O hino ao amor entra em sua carne. As duas mãos a acariciam por baixo do vestido. Envolvem os seios, passeiam em volta dos mamilos, descem pela barriga, chegam até a virilha... Vão para as nádegas... Tocam em tudo que está ao seu alcance. Ao contrário da canção eternizada por Piaf, não era apenas uma parte de felicidade que a possuía: era o êxtase, a realização do desejo, o gozo, o prazer, enfim, que a inundava. Revelavam-nos os gemidos, sorrisos, pulos e tremidas.
“C’est lui pour moi / Moi pour lui dans la vie / Il me l’a dit, l’a juré / Pour la vie”
Via-o claramente em seus olhos fechados, sentia o calor do corpo dele sobre o seu. O tórax dele pressionando seus seios, a língua que lambe e sussurra palavras de tesão e de amor na sua orelha, as pernas de ambos que se movem em sincronia e o juramento feito por ele – não dito, mas cumprido – de possuí-la, amá-la e querê-la como se toda vez que o fizesse fosse a primeira, a última e a mais importante.
“Et dès que je m’aperçois / Alors je sens en moi / Mon coeur qui bat”
Não ouve mais a música que termina. Todos os sentidos se deslocam para seu corpo. O clímax ultrapassa a divinal arte dos enamorados. Se Piaf impôs o luto a si mesma após perder o amado, ela faria o inverso, não só porque seu homem continuava vivo, mas porque o sentia junto de si, na carne e no coração. Retirou o vestido, a calcinha, levantou as pernas, juntou-as, pôs as mãos entre elas, começou a pular rápida e repetidamente, gemeu, gritou... Sem luto, sem tragédia, sem “La vie en rose” ao fundo. Parou de pensar, de lembrar, até de viver por alguns segundos. Não abriu os olhos. Apenas sorria, toda para ele.
Adormeceu. Acordou sob os lençóis, vestida dos pés à cabeça. Olhou pela janela. Chovia. Viu o relógio, a parede, a cabeceira da cama. Tudo como antes, nada havia de novo. Dura realidade à sua volta, em que a taça não guarda nenhum sinal da bebida dos deuses. Sonhar é viver, pensou ela. Infelizmente, o inverso não é verdadeiro. Viver é estar condenado a suportar o mais duro pesadelo para a alma humana: não ter a quem se deseja.

Um comentário:

Leonardo disse...

Crônica de Dom Ferdinando....
Cara, eu nunca duvidei das inúmeras capacidades desta figura mais do que querida... e ele nos mostra ser uma pessoa multifacetada. Fantástico historiador, possuidor de uma fina ironia, especialista em fórmula 1 (e não sabe dirigir!!!), ferrarista (e não gosta de macarrão!!) e agora cronista. Cara, sem palavras mesmo. Muito bom. E infelizmente o inverso não é verdadeiro. Azar nosso.
Forte abraço!

***

Maurinho, mais um cronista entre nós! Um dia vamos dominar o mundo!
Abraço para ti!