sábado, 10 de novembro de 2007

Carpe dying

Chegou em casa lá pelas tantas e se sentiu Deus pela décima nona vez naquela madrugada. Porém, gingava como um autêntico exu, exalando fumaça de charuto barato e o odor da mais vagabunda cana, o incenso e mirra que dois dos reis magos dariam ao autêntico Macunaíma que ele era. Sim, apenas dois, pois o terceiro tinha absoluta certeza de que este rapaz não valia a sola de sapato que fosse, quanto mais qualquer grama de ouro. Mesmo assim, a excêntrica criatura adentrou a porta da sala e dançou um apaixonado tango com cada móvel que cruzou seu caminho.

As luzes de cada cômodo estavam todas queimadas, desde que arrebentada estava sua alma pela solidão. Não sei se vocês têm conhecimento, mas esta não é um sentimento, e sim um espectro trajando capa e capuz preto, além de portar uma foice de cabo longo, torto e enegrecido pelo sangue alheio. Ele não era mais uma criança, sabia disso tudo, aliás, sempre soubera tudo que precisava. É claro que isso torna seu caminho mais tortuoso, pois mesmo possuindo o conhecimento do necessário, o ignora solenemente, em nome dos sonhos que tanto tardam a se realizar. E essa foi sua derradeira imagem na hora neutra desta madrugada: um verdadeiro pé de valsa que não deu sossego a nenhum objeto de cama, mesa e banho até chegar ao seu caixão forrado com os lençóis de duas semanas atrás.

O dia seguinte foi mais uma nota preparatória do desfecho em tom menor que tanto se alongava. Escreveu três cartas para três diferentes e queridos amigos. Três pequenos fragmentos de um ser despedaçado, como uma tentativa de recompor aquilo que um dia já chamou de si próprio. Três pulsantes cortes de um coração errante e errado, espatifado na queda que até então tomara por ascensão. Cada uma de suas furtivas fraturas vivendo o seu de repente não mais que de repente e lamentando a ligação intransponível com seu poeta favorito.

Tudo estava escuro, tudo estava confuso. O respirar de cada dia passou a ser feito em uma densa neblina, na verdade um véu resultante da água e do sal que se condensavam em seus olhos. Tantos hábitos, tanta surpresa. Tanta espontaneidade, tanta urgência. Tanta ânsia. Elementos que se degladiavam na bagagem de ilusões que ele descobriu que carregara só, tão somente só. E depois dessa confusão toda que se armou, ele pode vir a ser uma nota obituária, uma manchete heróica. Um presidente da república, um gerente da boca. Um pastor evangélico, um apontador de bicho. Um suicida, um santo. Isso fica a critério de cada um de vocês, pois ele mesmo acabou de descobrir que não controla para onde será direcionado o turbilhão de emoções do próximo. Assim como ninguém fará com o dele. Muito menos eu.

6 comentários:

Luis Antonio disse...

Eita!

Mauro Amoroso disse...

hahahahahahaahahaha
Melhor comentário do ano, pegou bem o espírito da ficção da coisa! (isso mesmo, ana paula, já disse que não sou daqueles que escrevem o que vivem!)

Luis Antonio disse...

"já disse que não sou daqueles que escrevem o que vivem"

A verdade do mundo poético não tem de dar satisfações à verdade do mundo real (Mário Quintana) hehehehehe

Mauro Amoroso disse...

hehehehehe
Muito bem lembrado

Leonardo disse...

mesmo não escrevendo sobre o que vivemos, não podemos esquecer que em parte somos fruto do meio, ou não? Afinal, duvido que não tenhas realmente dançado um tango com cada móvel da sala... e acrescento... o cachorro da porta da sua casa não ficou impune...

abraço

Mauro Amoroso disse...

hahahahahaahhah
ele nunca fica impune, ele sempre é o primeiro a ser bicado!
mas a cena realmente não aconteceu, nãp bebo uma gota há mais de 3 semanas por causa do estômago...
talvez alguém deixe de ganhar um ap,heheheheh