domingo, 3 de junho de 2007

Cai o pano

Aplausos. Música de ninar para o ego humano. A rotina de todas as noites desde a estréia da peça. Será frieza o fato de eu apenas não me importar mais? Mais aplausos. Agora, o buquê entregue pela assistente de palco. Uma reverência e o sorriso. Mais uma noite brilhante, estrelada por uma constelação de gargalhadas, epifanias, emoções. Duas mãos foram pedidas em casamento esta noite. Minha atuação tem sido elogiada em diversos aspectos, pelos mais rigorosos críticos. Até Bárbara Heliodora me chamou para um drinque, acreditam?

Mas o realmente engraçado, trama brilhante da dama irônica e imprevisível que é a vida, é que jamais comentaram meu ato mais brilhante como ator: o sorriso de agradecimento. O sorriso que transmite confiança. Olhares múltiplos trespassam o sorriso com admiração, como se conseguissem sugar toda a essência de confiança e crença na superação da adversidade, na capacidade humana de construção de maravilhas surpreendentes a partir da matéria de sonhos que abundam em nosso cotidiano. Se eles soubessem como eu me odeio. A minha verdadeira arte nem de longe é a prece a Dionísio neste palco semanalmente ensaiada. Não, em hipótese alguma. Aquilo que faço realmente de belo é me odiar, com a última intensidade suportada pela alma humana. Ódio a si próprio não como qualquer arroubo adolescente de quem quer um cabelo liso, um celular novo ou o ex-ficante. Meu ódio é um eterno implorar de quem queria ser somente diferente. Qualquer pessoa diferente. Qualquer um, menos eu, apenas qualquer um diferente.

Aplausos. Dar as costas em um movimento firme, confiante. Distanciar-me do público rumo às coxias. O espelho no camarim, que de tanto me fitar com os olhos da solidão tornou-se minha alma. E neste exato momento minha alma está postada à minha frente, portando uma bela garrucha cenográfica, abençoada com pólvora e uma bala de verdade. Aplausos, mais aplausos. Não mais da platéia, mas da minha alma. Eu me esforço para chorar, mas, pelo visto, encenar uma emoção autêntica é mais fácil do que vivenciá-la. Espero que Bárbara Heliodora não se sinta muito ofendida.

3 comentários:

Leonardo disse...

Engraçado como a vida nos coloca neste palco, muito vezes iluminado pelo olhar dos outros e sombrio quando submetido ao nosso. Personagens.... será que sempre encenamos e nunca somos nós mesmos? Será que só nossos espelhos são testemunhas do nosso próprio eu? HUm.... e eu achando que era o único a encarnar personagens ao subir no tablado... vã ilusão....

Anônimo disse...

Acho que quando deixamos os espelhos de lado, somos mais felizes e menos personagens. Porque somos menos narcísicos. Espelhos simulam a realidade quando a duplicam.

Anônimo disse...

Vã ilusão realmente... Vã existencia talvez... em que toda liberdade que temos, as vezes, consiste em sermos livres apenas para trocar nossas máscaras de "sentir" e nossas fantasias de "ser".
Quem realmente teria a disposição necessária para olhar outro ser humano totalmente "despido"? E, no fim de tudo, que criatura sem indumentária seria essa?
Pobre do espelho que em sua honestidade vitrea mostra tão somente o que se encontra diante de si! Causando, em certos momentos, grande mal não só àquele que reflete como a si mesmo, fazendo por vezes com que ambos terminem em pedaços...