terça-feira, 18 de setembro de 2007

Dois de outubro

Três horas da manhã. Acordo como se nunca tivesse dormido. Em toda minha vida. Meus olhos rodeados pela escuridão, como soldados abrigados em uma trincheira fria. O processo por eles vivenciado de se acostumar à realidade ao seu redor é lento, como um longo conselho de um advogado para seu cliente assassino e reincidente. Mas eles se familiarizam com a escuridão, como um recém-nascido tateando útero a fora. Não preciso apelar ao abajur para ver minha insônia sentada à minha cadeira de trabalho com um sorriso tenro. Minha mais antiga companheira. Tomara que ela não tenha entrado no meu orkut. Dias estranhos, sempre antecedendo a comemoração do meu nascimento. Maldita praxe, um dia ainda trabalho isso com meu analista, assim que arranjar um. Minha ironia ao acordar é apenas o instinto de defesa de um animal desorientado, assustado. Transmutar-se em melancolia é sua dança natural, harmonizada em tom menor e com passos imprecisos, hesitantes como órfãos aprendendo a andar sem ter a quem guiá-los. Tudo que preciso é de um copo d’água, pois o restante está distante demais para a solidão de um quarto frio. Como odeio aniversários.

Entre o quarto e a cozinha, a sala a qual devo atravessar. Os mesmo móveis velhos, guardiões das histórias, olhares e palavras certas nunca encaixadas nas despedidas para as quais foram geridas. Tudo que eu tanto gostaria de esquecer. Sabores amargos materializados em madeira, alumínio e vidro. No velho par de sofás sentam-se confortavelmente meus demônios e fantasmas interiores, portadores de olhares de julgamento e desviar de rostos movidos a desdém. Corpos dando forma aos anseios que eu releguei a terceiros e quartos planos do meu inconsciente. Tantos anos de solidão não lhes fizeram nada bem. Um deles me fascina mais. O menino que tem vergonha do homem que se tornará um dia. Somente os segundos antes de eu fechar os olhos pela derradeira vez me possibilitarão adjetivar a sensação que arrepia minha espinha quando nossas retinas se desafiam. Dia do anjo da guarda o caralho. Melancolia, passos pesados e noites frias, minhas únicas certezas de presente por mais um ano.

Sede saciada, o menino que tem vergonha do homem que se tornará um dia me carrega pelas mãos, suas roupas mudam a cada porta retrato deixado para trás. A camisa azul do uniforme do primeiro colégio, a blusa amarela e o short azul da seleção de 86. Os sapatos do pai, enormes como o mundo que ele um dia sonharia conquistar. Pesados como a tristeza que lhe abate em agosto e o liberta em outubro. A cada troca de farda, ou fardo, seus olhos de menino se tornam um pouco mais frios. Ele só precisa dormir mais um pouco. Como a alma que ama em silêncio e sem saber ser correspondida necessita apenas da frase que ela não sabe se ouvirá de volta algum dia (Deus, como isso angustia). Ele só tem que dormir mais um pouco. Até o fim do mundo como ele conhece, para que finalmente se inicie o mundo como ele deseja. Talvez ele consiga dormir mais um pouco. Sorrindo com a resplandecência de um anjo, em cada cova irradiando a liberdade de um pecador sem culpas. Não tenho vergonha dele, pois sei que conseguirá dormir mais um pouco, antes até de ouvir meu boa noite. Desculpem a amolação, mas eu realmente odeio aniversários.

sábado, 8 de setembro de 2007

Em homenagem a quem teve que passar pela Praia de Botafogo no dia 7 de setembro de 2007

Deus é amor mas não é guarda de trânsito!!!!

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Crônicas Ferdinandas

Bela e triste história de meu nobilíssimo colaborador Ferdinando. Não desistam, meus e outros caros, a vida nos surpreende de forma bela em qualquer esquina em que pisamos (como vc me mostrou, minha linda ;) )

Você chegou inesperadamente. Sua beleza me conquistou desde o primeiro dia no escritório. Corpo escultural, sorriso encantador, olhar penetrante. Claro que não me tornei um admirador solitário. Você era desejada por todos os colegas de trabalho. Não me importava. Eu tinha pressa em ir trabalhar, só para passar o dia perto de você. Trabalhar ao seu lado... Eu me achava o homem mais feliz do mundo.
Depois você ficou sabendo do meu estado emocional naquela época. Tinha sido abandonado pela minha ex-noiva, a única mulher que até então eu realmente amara. Jurei que não me apaixonaria por mais ninguém, até te conhecer. Descobri de novo a paixão, que depois de um tempo tive a certeza de ser amor. Estava amando novamente. Minha tristeza virou alegria, o que parecia impossível – amar – acontecia de novo. Eu precisava chegar em você, investir neste amor. Busquei sua amizade, você aceitou. Almoços, lanches, conversas, cochichos nas reuniões. Junto de você, eu me sentia no céu, iluminado pela minha deusa.
Dizem que todo apaixonado deve ter em mente que é um erro pretender a amizade da mulher quando o que se quer não é ser amigo dela. Foi aí que errei. A amizade cresceu tanto que o momento de assumir o meu amor era eternamente adiado. Esperei você me falar do seu namorado de fora da empresa para eu pensar se valia a pena me declarar para você. É claro que valia, mas me corroí de ciúmes por causa disso. Imaginava você junto dele, indo ao cinema, passeando no shopping, o beijando na boca, o abraçando, transando com ele. Tinha medo de você me comparar com ele. Isso diminuiu minha audácia de tentar transformar a amizade em amor.
Um dia, porém, tive a audácia. Eu me declarei, disse para você tudo que estava entalado há meses. Pouco me importei se você estava comprometida ou não. A recompensa pela minha coragem superou todos os meus medos. Nós ficamos. Você me beijou. Nem pensei em sexo, não precisava. Eu queria o seu amor, sua boca colada à minha, sua mão me acariciando, você sorrindo a cada vez que eu dizia: “te amo”. Voltei para casa cantando o início de uma nova relação, que nunca começou. No dia seguinte, sua indiferença era aterradora. Fiquei indignado. Chamei você para conversar. Você disse que seu namoro continuava de pé, que “ontem foi um momento de fraqueza”. “Desculpe, mas se você é meu amigo, deve entender as minhas razões”, foi sua sentença final. Pronto, eu era seu amigo. Fui ao céu, desci direto para o inferno.
Sou uma pessoa civilizada, você sabe disso. Mantive nossa amizade, não te destratei por causa da minha frustração. Mas não deixei de amá-la, de pensar em você todas as noites, de lembrar diariamente do gosto do nosso beijo, de morrer de vontade de voltar no tempo. Aí, você começou a flertar com ele. Justo ele, o meu melhor amigo. Vocês davam sinais de que não estavam apenas na paquera. Percebia pelas suas conversas que vocês se falavam sempre pelo telefone. Eu ligava para sua casa e não te encontrava lá, ligava para seu celular e você não atendia. Vocês se entreolhavam sorrindo no escritório, iam juntos para o corredor, almoçavam juntos, saíam em horários diferentes para despistar... Tive, na dúvida, a certeza de que vocês estavam saindo.
O dia em que o pouco de incerteza acabou foi na festa de fim de ano da empresa. Você chegou linda, junto dele. Sua felicidade estampada no rosto, a onipresença dele ao seu lado, tudo em você parecia uma provocação para mim. Tentei minha última cartada. Chamei você para dançar. Você aceitou. Eu te disse que não parava de pensar em você, que continuava a te amar. Você respondeu que estava em outra. Perguntei com quem. Você não respondeu. Ele te puxou para dançar. Vocês nem olharam para minha cara. Fui até a varanda para observá-los. Vocês se beijaram apaixonadamente. Meus olhos, fixos em vocês, estavam marejados, raivosos, frustrados, ciumentos. Eu me escondi atrás de uma árvore na calçada. Vi vocês saírem juntos. Para onde? Eu sabia para onde. Fazer o que? Eu sabia o que. Meu mundo caiu. A mulher que amo. Meu melhor amigo. Peguei um táxi e fui para casa chorar em cima do confidente dos amantes não-correspondidos: a cama de solteiro.
Caí em depressão. Pedi uma semana de licença do trabalho. Não conseguia comer, beber, tomar banho. Depois da licença, tive que voltar. Claro, vocês não namoravam dentro do escritório. Mas era só entrar no elevador que começavam. Beijos, declarações mútuas, olhares que brilhavam ao se cruzarem, tudo na minha cara. Meu rosto escondia minha alma. Sorria para não chorar e passar vergonha por causa do meu ciúme. Sorria com os olhos encharcados de lágrimas de dor.
Até o dia em que vocês convidaram todo mundo no escritório para o noivado. Era demais. Convidaram até a mim. Não, não conseguiria. Demito-me ou cometo suicídio, pensei. Por muito pouco não dei fim à minha própria vida. Só não o fiz porque já não achava que você merecia tanto. Mas eu não iria agüentar nem mais um minuto na sua presença, noiva, apaixonada (como disse) e prestes a se casar com outro homem. Eu me demiti, jurei nunca mais vê-la, nem a ele. Chorei muito, de novo, por causa de você, cadáver do meu coração, que achei que nunca conseguiria enterrar.
Passou um tempo até eu conseguir outro emprego. Você se casou com ele, disseram que a cerimônia foi linda, você estava felicíssima, vocês se beijaram tão apaixonadamente na frente do padre que ele até ficou vermelho de vergonha. Não tive como não imaginar. A lua de mel de vocês. Outro homem possuindo o corpo que tanto desejei ser meu, para sempre. Para me vingar – vingança tola, como são todas as vinganças –, mergulhei no sexo. Paguei todas as prostitutas que pude, consumi todas elas. Também paquerei, fiquei, até levei algumas mulheres para a cama. Fiz a minha purgação. Uma delas gostou de mim, começamos a namorar.
O tempo passou. Trabalhei, noivei. Hoje, abro minha caixa de entrada e tem um e-mail seu. Pensei no que você ia querer de mim. O livro que você me emprestou e nunca devolvi? Convidar para o seu aniversário de casamento? Anunciar o nascimento de seu primeiro filho? Você já tinha me feito sofrer demais com dúvidas. Abri para ver o que era. Eram lamentações. Ele foi carinhoso só no começo. Depois, se revelou um machista, grosso, preguiçoso, mal-educado. Suportou isso enquanto pôde, até que ele começou a bater em você. Diz que agüentou alguns meses. Em nome do amor, decidiu esperar que ele mudasse. Não mudou. Você voltou para a casa dos pais, pediu o divórcio, o caso está na Justiça. Diz que agora está arrependida do que fez comigo. Que não sabe como desperdiçou tanto amor. Que se pudesse voltar no tempo jamais teria me dito “não”. Que não mandava em seu coração, que na época só pensava nele, só queria saber dele, “alto, bonito, inteligente, divertido, forte...” Você quer se encontrar comigo. Pede reconciliação.
Você não tem noção do que fez comigo. Melhor seria se você nunca tivesse me beijado. Você não tem culpa de eu ter me apaixonado por você nem era obrigada a corresponder, mas você me provocou. Você me deu falsa esperança. Você deixou que eu mergulhasse no oceano da ilusão. Você transformou meu melhor amigo em meu maior rival. Por sua causa, mudei de serviço. Agora, depois de tanto esforço para reconstruir minha vida, quando achava que você já era página virada, você aparece. E a coerência com suas escolhas? Você irá me responder: no coração não existe lógica. Eu sei. Se eu fosse lógico, não teria me apaixonado nunca por você. Posso até estar errado, mas é o que diz meu coração. E no meu coração eu também não mando.